O que a comunidade de Alcoólicos Anónimos tem feito comigo

Olá, o meu nome é António M. e sou alcoólico em recuperação. 

Começo por agradecer todas as partilhas que já li e as que poderei vir a ler, ao meu Poder Superior e a todos os companheiros por mais estas 24 horas em sobriedade. Peço um momento de silêncio por todo o alcoólico que ainda sofre ou que já partiu. Obrigado. 

Quando me foi dito que sofria de uma doença biopsicossocial, irreversível e crónica, e que não havia medicamento algum para a sua cura, foi-me sugerido um internamento com o Programa dos “Doze Passos” inserido no processo de reabilitação. Eu, às escuras e um pouco assustado com tudo isso, acedi e lá fui, contrariado e desconfiado.

Honestidade, mente aberta e boa vontade, depois humildade, foram as primeiras e persistentes palavras que ouvi logo a abrir e que continuei a ouvir diariamente, proferidas e trabalhadas pelos profissionais de “endireitacabeças” na instituição. Admiráveis pessoas.

Conheço a Comunidade de Alcoólicos Anónimos através da instituição. Não foi fácil. Apesar de ser sugerido e não obrigatório ir a reuniões de AA, eu sugeri também que preferia ficar a ver televisão ao fim do dia. Mas, como não podia ficar só, disse que preferia ficar na carrinha que nos transportava diariamente. A Dra. deu-me a volta: disse-me que não era obrigado a fazer ou dizer nada, bastava estar presente e escutar; se me aborrecesse, poderia sair quando entendesse. Fui logo à primeira reunião de AA do programa de tratamento, e à minha primeira, naturalmente. Hoje, tenho mais que as 90 reuniões sugeridas pela instituição.

Isto do crescimento espiritual, sinto-o pouco a pouco. Quando, de início, me pareceu ser obrigado a aceitar que sou impotente perante o álcool e que tenho a minha vida ingovernável, hoje admito-o sem reservas. Como é que eu não via isso!? A perder tudo e todos, a negar uma realidade sempre em decadência, a matar-me dia após dia durante anos a fio. Eu, recém-chegado, nesse dia o mais importante (foi o que ouvi dos companheiros), quando já ninguém acreditava em mim, nem mesmo eu.

Decorei a Oração da Serenidade para não ficar mal visto no final: era o que me preocupava mais nas primeiras reuniões. No dia em que percebi que não era um tribunal como de início me pareceu, pois já tinha vivido tal experiência pelas minhas insanidades cometidas devido ao consumo desmedido de álcool, e só por isso, dei comigo a partilhar também as minhas vivências ao ponto de me exceder e, apesar de ninguém me dizer para me calar, fui levado a perceber que outros companheiros precisavam igualmente de partilhar. Obrigado por me terem ouvido em silêncio e ainda bem que sem diálogo.

A Oração da Serenidade - que, de início, comecei por somente decorar - começou a ser a primeira ferramenta a utilizar para o meu dia-a-dia a partir do momento em que me dispus a compreender o seu fundamento. Por tentativas, serenidade, coragem e sabedoria foram-me sendo concedidas por um Ser Superior, conforme eu O concebo, que pode ter sido, de início, o meu ou outro Grupo.

Os factos que não posso modificar tento aceitar com maior regularidade. Tenho maior clarividência para modificar os que posso e esforço-me por distingui-los, sabendo que posso sempre entregar a Deus os que ainda não sei gerir.

A fé significa confiança e não um desafio... Hoje faz mais sentido para mim estar confiante e ser igualmente mais um caso de sucesso na comunidade de Alcoólicos Anónimos, não por AA mas por mim, não obstante somente todos juntos o conseguirmos se trabalharmos para isso. A minha presença nas reuniões é o factor determinante do que está primeiro e que é o mais importante: a minha recuperação, a minha sobriedade. Hoje, dedico-me mais a escutar ao invés de apenas ouvir as partilhas. Ao princípio da minha recuperação, só conseguia ouvir parte delas, distraía-me facilmente, tinha dificuldades de concentração ou nem tinha nenhuma.

O serviço em AA, como eu o encaro, é um voto de confiança dado pelo companheirismo do meu Grupo. Sou servidor de confiança e não um governante. Nem sempre estou com disposição para fazer o chá ou servir o café, mas depois sabe-me tão bem e é tão reconfortante... É mais uma ferramenta para a minha recuperação, senão uma das mais importantes: o serviço.

Adquiri alguma Literatura de AA, não muita. Tem um preçário acessível e de valor inferior relativamente ao seu rico e importante conteúdo. Hoje, quando volto a ler um determinado tema, seja de um folheto ou livro, surge-me algo de novo do que me pareceu ter lido e julgado apreender em outras alturas. Até mesmo os “Doze Passos e Doze Tradições”. O que me parece - ou tenho a certeza - é que, antes, lia mas não descodificava o conteúdo. Também não tinha paciência para ler. Hoje, apesar de não saber ainda se é bom ler muito ou se ler pouco é mau, tenho a noção de que ajuda e resulta ler a Literatura de AA na ausência de reuniões. É verdade. Também me parece que é resultado de algum crescimento espiritual que se verifica na minha Comunidade de Alcoólicos Anónimos. De todos, não só meu. Se o sinto? Sem dúvida.

Tenho feito algum inventário pessoal e moral e, se me dispus a reparar danos, não quero dizer com isso que o tenha já posto em prática; pelo menos, algumas reparações consegui. Mas, como é sugerido, “umas vezes mais depressa, outras mais devagar”, tenho de pensar que também algumas “coisas” mais depressa podem resultar mal, assim como outras que pecam por tardias podem nem sequer vir a ser feitas. As oportunidades surgirão quando eu menos esperar e, se souber esperar, talvez seja melhor para mim e deste modo para os outros que, por vezes, até dizem que já não se lembravam disto ou daquilo quando abordados sobre o assunto. Portanto, entrego a Deus aqueles com os quais não sei ainda lidar. 

Posso cair na velha ideia de que pedir desculpa resolve, sem me lembrar que as desculpas devem ser evitadas. Eu tenho outras reparações que nunca poderei vir a fazer, pois terão de ir comigo para a outra vida, se é que existe. Atenção, digo isto hoje porque é Alcoólicos Anónimos que me tem dado este dom de agir, antes não era nada assim. Ou fingia que não sabia, ou nem sequer queria saber. Pelo menos hoje, admito que errei, embora sabendo que isso, por si só, não é suficiente. Mas também não sou perfeito e só peço a Deus que me livre de todas as minhas imperfeições, como se isso fosse possível.

Tive, tenho e mantenho ainda determinados defeitos de caráter. No entanto, pelo menos um, o do “mau perder”, em que ficava de tal forma irritado, sentido de humor agressivo, mal-educado, etc., pelo menos já não parto coisas e fico na maior parte das vezes chateado somente comigo mesmo. Não ofendo terceiros, já me posso dar por satisfeito e endereçar a AA a gratidão por esta dádiva. 

Tenho a agradecer a Alcoólicos Anónimos muito mais. No que respeita a bens materiais, estou feliz mesmo com pouco. Tenho em AA o mais importante: a ajuda de que precisava para um rumo de vida com sanidade mental, saúde física e até mesmo as questões de descontrolo financeiro estão a ser resolvidas, tudo passo a passo. 

Resta-me agora, através da oração e da meditação, pedir a Deus que me mantenha neste caminho. Talvez um dia eu seja capaz de ajudar outros alcoólicos a se recuperarem. Obrigado a todos os companheiros de Alcoólicos Anónimos, ao meu Grupo de AA, ao meu padrinho e ao meu afilhado, pois, claro, eles estão nesta minha partilha de cima a baixo sem que tenham sido mencionados. E estou agradecido ao meu Poder Superior por me ter dado mais estas 24 horas em sobriedade, só por hoje.