Poder Superior

Em AA, há palavras que se empregam com mais frequência do que outras e que fazem parte do nosso Programa de Recuperação, tais como honestidade, mente aberta, crescimento, humildade, aceitação, espiritualidade. São palavras que só comecei a ouvir em AA ou, pelo menos, a prestar atenção ao seu significado. Eu queria ser tudo isso e praticar tudo de um dia para o outro. É evidente que não foi assim.

Uma palavra que me chamou muito a atenção foi “mudança”. Eu queria mudar e pensei: “Agora que já não bebo, tudo vai mudar; é só não beber o primeiro copo”. Mas não foi bem assim. As únicas coisas que mudaram foram as insanidades que eu fazia alcoolizado. Essas, deixei de as fazer.

Mas apercebi-me de que, apesar de não beber, havia coisas em mim que continuavam a incomodar-me. Conversei com um companheiro (mais tarde meu padrinho) sobre todas as minhas dúvidas e medos. Ele só me perguntou como é que eu estava a praticar os Passos, ao que respondi que ainda não os tinha começado:

- “Tenho tempo, pois o principal é não beber o primeiro copo”.

Lembro-me, como se fosse hoje, do seu sorriso e da sua aceitação da minha ignorância. Com muita calma, começou a falar-me dele próprio, do seu percurso de bebedor, da sua recuperação e de como se sentia bem e feliz. E disse-me, de forma muito simples:

- “Se queres o que eu tenho, faz o que eu faço.”

- "Sim! Mas o quê?"

- “Pratica os Passos.”

A partir desse dia, compreendi que AA é muito mais do que não beber: é uma nova vida que começa, uma esperança no dia de amanhã, é acreditar que a vida vai ser diferente e que se pode ser feliz, mesmo que seja um dia de cada vez.

Comecei então a ler os Passos, um a um, e, com ajuda, a compreender a sua mensagem de recuperação e amor. Mas não foi fácil. Sendo eu agnóstico, fui logo defrontar-me com a parte que, para mim, era “a religião”, pois falavam de Deus, em quem eu não acreditava, fosse Ele o que quisessem que fosse. Nem sequer aceitava o tal “Poder Superior”. Durante anos, foi essa a minha luta interior: entre o desejo de mudar e a não-aceitação de um Poder Superior a mim. Solução: fazer os Passos à minha maneira, praticando uns, saltando outros. O resultado não foi grande coisa, ou foi muito pouco.

É claro que, quando tudo corria bem, eu pensava que tinha mudado e que praticava o Programa. Mas o pior é quando surgiam problemas de várias ordens. Vinham logo ao de cima a falta de humildade, aceitação, entrega, etc, ou seja, tudo o que eu não praticava. Mas “eu queria mudar”.

Decidi fazer um inventário de todo o meu percurso de vida, desde que me conheço até parar de beber. Com toda a honestidade e sinceridade, sem rodeios e falsas respostas às perguntas que não me agradavam. Analisei com cuidado várias situações por que passei, a beber ou não, algumas até em perigo de vida. Depois, fiz o mesmo desde que entrei para AA até essa altura, já há alguns bons anos. Conclusão: alguém tinha andado e continuava a andar comigo ao colo. Não podia ser só sorte ou coincidência. Até mesmo o facto de ter parado de beber de um dia para o outro, o que para mim parecia impossível. Tinha de haver qualquer coisa que me guiava e acompanhava.

Hoje acredito num Poder Superior, em algo que não é racional, que não tem que ver com o Deus da religião, mas que existe e está ao meu lado, mesmo que eu não O veja.

E eu quero continuar a mudar.

C.