Prazer imediato, o reverso da medalha

Acabei por me habituar a tudo, mesmo a coisas terríveis, sem valor ou sem moral ou sem qualquer sentido, a não ser aquela absurda procura de sensações novas e imediatas, cada vez mais excitantes ou insanas, que a minha mente decretou só poderem surgir através de substâncias e atitudes exageradas. Copos, festas “mágicas”, relações deturpadas e tóxicas, acréscimos de sensações fortes e adrenalinas loucas, toda uma vida fora das minhas mãos e dos valores humanos básicos. Dou hoje valor à vida que tenho e se alguma vez a lembrança das minhas primeiras embriaguezes se queira disfarçar de doçura, basta lembrar-me: do que eram feitos os meus dias e semanas antes de entrar em AA?

6h18. Tocava o telemóvel e eu emergia de um sono sem descanso, com uma angústia na barriga só de começar a pensar no que me esperava: enfrentar as pessoas num dia igual aos outros, baixar os olhos, fingir não ouvir, não ver e não sentir.

Descia as escadas, já cansada, em direção à cozinha para ligar a máquina do café. E logo ia buscar a garrafa à despensa e bebia de três a seis golos. Acalmar. E, ao mesmo tempo, pensar: “não podes beber mais, porque depois vais cheirar mais também…”. Mas bebia mais três na mesma. Eram os meus “números”: três-seis-nove. Depois enchia dois potinhos de iogurte para levar às escondidas na minha mala. O resto da garrafa seguia atrás, mas ficava no carro. Carro? Claro, todos os dias, durante anos, a conduzir 25 km de ida e 25 km de volta neste estado.

Depois, tomar banho. Não é que quisesse muito, mas atenuava o cheiro a álcool e a tabaco, pois na altura fumava muito. E os dois misturados são muito enjoativos… Beber café, pegar nas coisas e carro. Fumar. Só naquele momento estabilizar. O álcool já tinha feito o seu efeito e eu já conseguia não sentir nem enjoos, nem tremores, nem nada destas coisas.

Estacionar. Um olhar para a garrafa que vai ficar o dia todo na mala à minha espera, e eu a passar mal lá em cima… Mais um golo e fecho a mala. Novo café, mas no balcão. E lá vou eu, já meio zonza, começar o meu dia. Deveriam ser 8h30, mas passa já das 9h, ou 9h30, consoante “o trânsito”.

Quando entro no meu local de trabalho, sinto os olhares que me detalham. Sei do cabelo sem cor mal penteado, da minha face cada vez mais vermelha que tento esconder com blush, da roupa desajustada que já não me serve, de tão inchada que estou. Sinto o desprezo e uma certa tristeza também, mas… mais nada. Fecho-me no meu mundo o mais hermeticamente possível. E vou contando as horas que me separam do regresso à garrafa. De vez em quando saio para a casa de banho para esvaziar os potinhos de iogurte-álcool. Outras vezes, quando já acabaram, invento correio, farmácia ou dou uma corrida até à mala do carro, mas isso é raro. Também finjo almoço e lanche e, quanto mais a hora se aproxima das 17h/17h30, mais nervosa fico, mais as mãos tremem e o coração salta.

Quando, finalmente, chega a hora, exausta, estou no carro, de estômago revoltado e o primeiro golo volta logo para trás. Respiro fundo e aguardo uns instantes que as náuseas passem de forma a conseguir beber para acalmar. O resto será um conhecido percurso de supermercado-garrafa, casa-garrafa, cozinha-garrafa, sofá-garrafa, cama-garrafa pois naquela altura já não usava copos.

E pronto. Já fiz o filme até ao fim. Isso é um exercício excelente para mim quando, por vezes, a minha mente parece só me querer mostrar “a malta que bebe fresquinhas nas esplanadas”. Esta “malta” possivelmente não tem a minha doença e, se tem, nada melhor do que continuar em recuperação para podermos manter as portas abertas!  Obrigada, companheiros, por me terem tirado deste filme de horror e fazerem parte desta nova e bela caminhada!