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Republicamos
Não posso mudar o vento mas posso ajustar a vela
Maus ventos bafejaram a minha infância. Perante a morte de minha mãe, meu pai que há pouco tempo tinha inaugurado a vida de casado, viu-se assim com uma criança de tenra idade nos braços, sem saber bem como superar tal situação. Valeu-lhe uma amizade de infância, companheira de grupo de praia e que sempre gostara dele.
Casaram e, por incompatibilidades de longa data entre meu pai e meus avós, este deixou-se influenciar pela família da minha madrasta. Nesta família ninguém gostava de rapazes e, logo eu que era bastardo...
Como recebia um amor por obrigação, materialmente nada me faltava. Meu pai, que na sua infância contou com uma larga dose de indiferença afectiva por parte dos meus avós, pouco se apercebia da aridez de carinho que me rodeava e, pior ainda, da falta de incentivosà formação do meu carácter. Espartilhado por uma invisível mas sempre presente cartilha de proibições, acompanhada de um constante repisar da minha falta de valor, da minha iniquidade e da subalternidade perante todos os outros elementos da família fui, aos poucos, acreditando que de facto era tardo de raciocínio, pouco inteligente, feio e falto de iniciativas.
Numa progressiva castração intelectual, acomodei-me a que outros por mim pensassem, resolvessem os meus problemas e tomassem as iniciativas que supostamente só a mim estariam reservadas.
Estudei em regime de internato, num coolégio cuja orientação disciplinar era acentuadamente militar. Também aqui, pouco espaço livre havia para me descobrir, os castigos eram severos (ainda não havia a fobia das criancinhas traumatizadas...) e, há que convir, esta situação masoquistamente convinha-me, mau grado sentir que continuava subjugado, joguete de quem se considerava, com o meu aval, superior a mim.
Encolhi os ombros ao rumo que devia dar à minha vida. Era um barco encostado ao cais sem velas para zarpar.
Nesta altura, descobri o efeito que as bebidas alcoólicas em mim produziam. Ah!... que descoberta; que independência, que soltura de atitudes e desenvoltura o álcool me dava; era isto, era este o elixir da coragem que eu há muito procurava; era esta a vela que desencalharia o meu barco.
Com a bebida, vesti a capa de espirituoso; comecei a ser animador de festas e convidado crónico em todas as reuniões, mais ou menos intelectualoides, promovidas pelo círculo de amigos em que eu recentemente me tinha integrado ou me integraram; em pouco tempo, no entanto, os excessos com a bebidasuperaram as suas imaginárias vantagens.
É certo que desencalhei o veleiro mas, aproveitar os Alísios ou bolinar para vencer ventos contrários, era arte que então não dominava; mais ainda, não estabeleci um fito, uma ambição, um rumo para o barco da minha vida.
Era o que a maré ditava. Das tempestades das minhas bebedeiras, restavam destroços, rombos cada vez mais difíceis de colmatar. Erguia os olhos a uma potestade, em súplica, pontualmente em pedincha da sorte mas, sistematicamente cometia os mesmos erros com as adriças dos meus comportamentos, esperando tirar resultados diferentes com as velas da minha fortuna.
Derrotado, naufraguei e morri de desalento na praia da minha impotência. Inerte de auto-piedade, fui erguido em peso por um pescador-de-alcoólicos-perdidos que me apontou Alcoólicos Anónimos como uma boa escola para aprender a forma de, com segurança, aproar o futuro. Tive e tenho reuniões de AA que, sistematicamente, me relembram a necessidade de me manter sem beber para que melhor possa ter a minha bússola e rumar, em pequenas viagens, de porto seguro para porto seguro, conheço agora Doze Passos que me ajudam a lidar com todos os instrumentos do meu barco e a forma de o conduzir; tenho também Doze Tradições para que, ao tentar cumpri-las, consiga conviver e respeitar os outros mareantes, sem os abalroar nem cruzar rotas. Tal como os antigos nautas, obriguei-me a ter fé na superação do desconhecido, que cada alvorada me traz.
Graças a AA e à companha engajada em cada Grupo, aprendi a conhecer as minhas possibilidades e as minhas limitações. Qual ventos de alto-mar, recebo influências fortes e muitas vezes contraditórias; mais seguro, porque o álcool já não faz parte da minha vida, descubro agora a possibilidade de ter opções e, mais espantoso ainda, que posso escolher qual quero independentemente de ser a melhor. Procedo agora segundo a minha consciência, perante os desafios diários, seguro de que poderei arrostar com as consequências; as provações existem tal como o vento, como este, não as posso mudar mas posso ajustar a minha vela para que o rumo a bom porto não seja interrompido.
Vitor P.
Área 7
(Publicada na Partilhar nº 49, 3º Trimestre de 2009)