Apresentei-me a mim mesma pela primeira vez
Quando me vi, como que por milagre, livre da compulsão pelo consumo de álcool, percebi que, para que este estado permanecesse, precisava de fazer algo que nunca fizera antes, algo radical. Se assim não fosse, os meus fantasmas - que nunca aguentei nem aguento - rapidamente me levariam de novo à bebida. Virei-me então para o Programa de Doze Passos de AA.
Com o tempo, a minha mente ficou disposta a receber novas ideias, fruto de me ter apercebido e aceitado que a minha impotência não era só perante o álcool, mas perante a minha mente quando funciona sozinha e livremente. Isso tinha eu feito toda a vida e, obviamente, não tinha dado certo. Estava na hora de ouvir outros, porque ouvir só a minha voz levara-me sempre à desgraça.
Aceitei finalmente que padecia de uma doença, o que me livrou da culpa pelo meu passado e, em contrapartida, me trouxe uma enorme responsabilização pelos meus atos no ativo, coisa que, sinceramente, não sentia minimamente até então. Aos poucos, fui percebendo que, ao contrário do que sempre tinha percebido e acreditado, prejudicara muita gente e era uma pessoa cheia de defeitos de caráter. Esta descoberta foi violenta e dolorosa, ou não tivesse eu chegado à primeira reunião de AA cheia de sofrimento, a sentir-me uma vítima da maldade dos outros. Mas o pior não foi nada disto. O mais doloroso foi ter percebido que apenas tinha uma fé doente, conclusão a que cheguei ao ter descoberto a verdadeira fé num Poder Superior a mim mesma, capaz de me livrar do álcool e de guiar toda a minha vida.
Tudo isto serviu de preparação para aquilo a que chamo “o coração deste Programa”: um minucioso inventário moral de nós mesmos. Durante uma vida de consumo, o álcool destruiu o meu caráter (ainda incipiente, porque eu tinha apenas 14 anos quando comecei a beber) e construiu um outro, que não é meu, não me pertence e que já não quero. Era isto que eu queria: ser uma pessoa diferente da que fora, ou melhor, ser, finalmente, quem eu realmente sou e que o álcool não permitia que se manifestasse.
Uma real mudança de carácter não é possível sem um conhecimento minucioso de quem somos, chegando às coisas mais subtis e escondidas da nossa personalidade, indo aos traumas (de infância, principalmente, mas não só), identificando pelos nomes todos os fantasmas e percebendo a relação directa destes com os defeitos de carácter. É um processo fascinante de descida ao inferno de nós mesmos, que fiz na companhia do meu Poder Superior, sem o qual não me atreveria a ter descido.
Quando, a uma espiritualidade, se associa um verdadeiro autoconhecimento, bem como a admissão daquilo que somos perante outro ser humano, estão reunidas as condições aptas a produzir resultados radicais em cada um de nós, desde que nos disponhamos verdadeiramente a isso, o que se consegue através de uma total honestidade (connosco mesmos, em primeiro lugar) e de uma total humildade perante os outros e perante um Poder Superior a nós mesmos. Tudo isto é libertador: saber quem somos, finalmente; contá-lo a alguém; descobrir a humildade, fonte de paz e felicidade; encontrar o abraço, o colo de um Poder Superior.
Por esta altura, eclodiu em mim um despertar espiritual que mudou a minha vida por completo. Foi tão drástico e novo que, se não fosse o meu padrinho de recuperação, teria pensado que estava a enlouquecer. Percebi que a vida não me pertencia. Percebi o porquê do meu percurso de sofrimento até chegar a AA. A espiritualidade que me entrou pela janela de casa adentro foi a melhor e mais verdadeira coisa que já conheci, apenas comparável ao colo da minha mãe. Quanto mais humildade praticava, mais próxima do Poder Superior ficava e, consequentemente, mais feliz. Descobria uma felicidade diferente, duradoura, oposta às felicidades que conhecera até então, que duravam minutos, horas, dias (raramente), e que resultavam da satisfação dos meus instintos desenfreados e dos meus outros defeitos de carácter.
Sempre bebi à procura de uma satisfação que este mundo material não me podia dar, nunca nada chegava. Sem saber, a minha mente bebia à procura de um Poder Superior mas, como não sabia disso e não o encontrava, bebia mais ainda.
Não optei por seguir uma vida exclusivamente espiritual, mas deixei de viver em função da satisfação das minhas vontades e passei a viver, tendencialmente, de acordo com a vontade do meu Poder Superior. As necessidades espirituais, em detrimento das materiais, passaram a ser as primordiais. Percebi que era esta a pessoa que queria ser, agora e todos os dias: a pessoa que eu sempre devia ter sido se não tivesse tido uma vida inteira de consumo de álcool. Apresentei-me a mim mesma, portanto, pela primeira vez.