Passado é experiência, não é residência
Aceitar que sou alcoólica não foi fácil, mas foi possível quando percebi que um dos grandes problemas era o meu ego. A "grande obra" que é Alcoólicos Anónimos salvou-me das garras desta doença perversa, manhosa e ardilosa que é o Alcoolismo. Antes de começar a minha partilha, a primeira palavra que endereço é a Alcoólicos Anónimos: gratidão.
Percebi que bebia de uma maneira que já não era normal e que tinha perdido o controlo. Pedi ajuda através da Linha de Ajuda Nacional de AA, mas não por vontade própria, por mim mesma. Foi para fazer a vontade à minha família, que adoro. Fiz algumas, poucas, reuniões, mas achei que elas não eram para mim e arranjei muitas desculpas para a minha família, mais concretamente para o meu marido, para não as fazer. Numa dessas reuniões, eu estava de tal forma embriagada que, ao fim de quinze minutos talvez (já não me lembro), caí redondamente da cadeira para o chão, no meio da sala. Foi aí que recomeçou a pressão do meu marido para eu parar de beber e pedir ajuda.
Fiz então dois internamentos, com um intervalo de um ano entre eles, em que estive algum tempo sem beber. Depois do segundo, recaí logo ao fim de 4 meses. Eles serviram pela desintoxicação, pela confirmação de que eu tinha, afinal, uma doença e não um vício, para saber que não era por ser fraca e não ter força de vontade que eu bebia e para começar a conhecer melhor Alcoólicos Anónimos pois, em internamento, quando ia às reuniões, estava sóbria e o que ouvia começou a fazer sentido. Mas nada disso foi suficiente, pois saí dos internamentos com muitas reservas, nomeadamente com dúvidas se seria alcoólica, achando ainda que conseguiria controlar a minha forma de beber (independentemente de ouvir nas reuniões de AA e nas terapias que o perigo era o primeiro copo).
O crucial foi que, após quatro anos (algures num dos primeiros dias de Dezembro), entre internamentos e recaídas, eu finalmente aceitei que era uma doente alcoólica e que não poderia voltar a beber bebidas alcoólicas. Nem uma gota. Também, em simultâneo, comecei a descer do meu pedestal e decidi, com determinação - e também por já estar muito cansada daquela vida de mentiras e ressacas - enfrentar a caminhada da recuperação que tinha de fazer.
Quando tomei esta decisão foi mesmo de dentro do meu eu e, por isso, fui à luta de alma e coração aberto e disposta a fazer tudo o que fosse necessário para voltar a ser uma mulher digna, respeitada e com os valores morais e sociais que tinha perdido completamente.
Já sabia que não bastava só parar de beber. Tinha de fazer mudanças profundas em mim, na forma como vivia comigo mesma e com os que me rodeavam, e também ter uma nova forma de olhar para a vida. E olhar honestamente para dentro de mim, que foi o que nunca quis fazer e que foi uma das razões das minhas recaídas.
Independentemente das minhas recaídas, nunca deixei de fazer reuniões de Alcoólicos Anónimos e de dizer que tinha recaído mais uma vez. Custava-me muito. Mas ouvia a palavra honestidade tantas vezes nas reuniões que não conseguia mentir aos meus companheiros, que tanta esperança, amor, força e coragem me davam para continuar na minha luta. E o que ouvia, os abraços, o carinho que emanava nas salas, faziam-me voltar. O abraço era sempre mais forte e "volta que isto resulta", diziam sempre. E resultou. “Só por Hoje”. Graças ao meu Poder Superior e à minha boa vontade para recuperar, até agora não pensei mais no álcool nem tive vontade de beber.
A aceitação ajudou-me muito no processo de crescimento. Antes, eu apenas tinha passado por AA: ouvia pouco, só olhava para as diferenças, fazia partilhas que não passavam de meros discursos decorados dos livros e folhetos. Agora eu estou em AA.
Tem sido difícil compreender a pessoa em que me tinha tornado, mas tudo ficou mais claro e mais fácil com a aceitação, a mente aberta e a boa vontade, com o confiar, entregar e pedir ajuda do fundo do meu ser. Sobretudo e o mais importante: sentir verdadeiramente o que o Programa dos Doze Passos da nossa Comunidade transmite.
Era tão simples. Eu é que compliquei. Passei a aceitar-me e essa foi a melhor atitude que tive, pois compreendi que o meu passado foi importante para que eu me tornasse uma pessoa melhor. Hoje sei que serviu de experiência mas não de residência.
É fácil falar quando não se está na pele do outro, e eu fiz muito isso. Julguei o mundo, diminuí-me perante os outros, acreditei sempre que estava certa. Eu não tinha amor-próprio e, sem ter consciência disso, a inveja habitava no meu peito. Estou a ser libertada disso.
No entanto, agradeço pela pessoa que fui, pois isso ajudou-me a tornar-me hoje uma pessoa melhor. E sei que ainda devo, posso e quero melhorar mais. Basta eu querer verdadeiramente viver através dos princípios que o Programa de AA me oferece, vivenciando-os com amor, honestidade e humildade junto dos meus companheiros de jornada em recuperação, fazendo reuniões e colhendo a ajuda e as sugestões que me são dadas; e, claro, com a ajuda dos meus padrinhos.
Ainda tenho muito caminho para percorrer e muito para aprender. Mas a minha felicidade é imensa, pois sinto que quero muito - por mim, antes de mais, e com amor - continuar nesta caminhada de recuperação, que é para o resto da minha vida. Foi através dela que conheci o amor incondicional entre pessoas que não se conheciam e se uniam porque tinham uma doença em comum (o alcoolismo) e o mesmo propósito: manterem-se em sobriedade. E sobriedade, para mim, é muito mais do que apenas deixar de beber; é também um sentimento de paz e serenidade que tanto procurei na vida. Para mim, onde está AA reunido é solo sagrado.
Devo esta nova forma de vida que amo e os 1 130 dias que tenho de recuperação a mim mesma, fazendo a minha parte, e a Alcoólicos Anónimos, aos meus padrinhos e à minha família, principalmente ao meu marido. Apesar de tudo e de todas as insanidades que cometi, deram-me amor incondicional na altura em que eu menos merecia e quando eu mais precisava. Quando comecei a frequentar AA, o meu marido passou a frequentar Al-Anon, comunidade à qual também estou grata pois, graças a ela, hoje tenho a família de novo unida, numa caminhada que percorremos em harmonia, ou seja, a aprender a viver em paz e com muito amor.
Aprendi a ter amor-próprio e, agora, aquela pessoa que tanto se humilhou por um pouco de atenção e amor está a desaparecer. Hoje sei do que sou capaz e que posso ser feliz sem depender de ninguém. Mas, claro, somente com o meu passado pude compreender isso. Hoje sinto uma enorme necessidade de aprender através dos companheiros, do Programa, do serviço, dentro do meu Grupo base e especialmente fora do Grupo. O Serviço tem sido fundamental, pois criou excelentes alicerces para o meu crescimento como pessoa e como membro de AA, quer espiritual quer emocional, apesar ainda dos meus erros. Sei que não sou perfeita mas não é pedido isso, nem nunca será, em AA.
Quero evoluir e não olhar mais para trás. Todo o meu percurso e o tempo despendido para chegar à recuperação foram uma lição que está a render bons frutos, pois, apesar do tempo que levei para admitir os meus erros e aceitar a minha doença, hoje consigo ajudar pessoas que sofrem como eu sofri.
Com infinito amor e gratidão por Alcoólicos Anónimos, desejo a todos vós excelentes 24h. Só por Hoje. Bem hajam.