Porto de Abrigo

Decorria o início dos anos 70 quando nasci numa clínica particular no centro de Lisboa, às mãos de uma parteira já velhota que, trinta anos mais tarde, viria ainda a ajudar no parto do meu filho. 

Os anos 80 trouxeram-me a descoberta e o início de uma doença que iria dar origem a um internamento. Nesses anos, aprendi a andar nos transportes públicos e acabei profissional da “pendura” nos eléctricos. Tinha pressa de viver e aprendi uma única brincadeira: o futebol. Não fui muito bom, mas também não era guarda-redes. Veio a escola e a fase de me instruir. Ainda no segundo ciclo, apareceram as “idas para a rua” e as suspensões. Veio o liceu e a necessidade de demonstrar que era esperto e forte. E ser do bairro dava-me umas “costas quentes” que adorava. Repeti anos atrás de anos, criei grupos de atrevidos e malandros, onde eu tinha a mania de que controlava e mandava. 

Nos anos 80, iniciei todo o tipo de jogos e, todos os dias, o pensamento de ter “fezadas” dava-me muito prazer. Relacionamentos também muitos, ao mesmo tempo e de preferência que dessem nas vistas, sem proveito emocional. Vieram os “fumos”: iniciei com os “mata-ratos” e acabei os anos 80 a comprar “sabonetes”. Já nem tabaco comprava. 

Conheci o álcool, o meu primeiro e mais duradouro amor no ciclo preparatório. Fui levado de braços para casa e no final já bebia todos os dias e em todas as refeições. Nos anos 90, casei porque já namorava com uma moça há muito tempo. 

Cresci com as alcunhas de maluco, doido descabido, meia-tola, seca-pipas e adegas. Que orgulho tinha eu de mim! Finalmente, era reconhecido e era realmente bom em alguma coisa. O álcool fazia-me especial, forte, inteligente e bonito. 

Comecei a trabalhar de manhã numa empresa pública - pois era preciso alimentar as minhas vontades -, na distribuição de correspondência. E à tarde tinha outros trabalhos. À noite fazia negócios na minha cabeça. O que me interessava mesmo era ir alimentando a forma acelerada e sem escrúpulos que tinha. Bebia em todas as refeições e começava ao acordar usando o álcool para seguir em frente. 

Entrou o ano 2000 e, com 28 anos, deu-se um “apagão” na minha vida que me levou a um internamento em Outubro de 2016. Foi cavernoso, com muito sofrimento, escuro e com poucos flashes de luz, como o nascimento do meu filho... O divórcio da mãe dele quando já tinha 10 anos, multas por ter sido apanhado a conduzir alcoolizado e, por fim, quando já tinha perdido e destruído carros e ia perder a casa onde vivia, o meu filho com 15 anos decide ir-se embora, alegando que não aguentava viver assim comigo. 

Fui para tratamento e, com a ajuda da medicina, fiquei um dia de cada vez sem precisar de beber álcool para me vestir. Passaram 15 dias desde o internamento e tinha sido possível passar os dias sem beber! 

Foi então que, na minha maneira de ver, um milagre aconteceu! Em tratamento, conheci um rapaz de Alcoólicos Anónimos que me disse que havia uma hipótese de viver. 

Conheci AA, percebi e acreditei que tinha uma doença. Acreditei que, sem ajuda, não era capaz de me manter sem beber e nunca mais fiquei sozinho. Acreditei que, um dia de cada vez, como o meu padrinho em AA me ensinou, ia perdendo a compulsão pelo álcool e parando de sonhar com ele. Aprendi que, nas reuniões de Alcoólicos Anónimos, através da partilha e com a identificação, havia solução para os meus problemas todos, uns atrás dos outros, e as soluções foram aparecendo. Segui as sugestões porque eu sabia que a minha cabeça não funcionava bem e nunca resolvia nada. Desde sempre que alguém os resolvia por mim. 

Fiz reuniões todos os dias, por vezes mais do que uma. Era lá o meu porto de abrigo. Apoiei-me nos companheiros e comecei a mudar. Entreguei a casa que não pagava e aluguei uma casa modesta, comprei passe social, comecei a usar os transportes legalmente e deixei de usar as mulheres como empregadas, mesmo as que habitavam comigo. Comecei a pagar as contas e a não fugir delas. Comecei a ser honesto e deixei de ter vergonha do meu passado, especialmente do “apagão” que sofri durante 16 anos. Pedi desculpa aos meus familiares mais directos pelo mal que lhes tinha causado e, em especial, pedi perdão ao meu filho, dizendo-lhe que estava a dar uma hipótese a mim mesmo de poder fazer diferente. 

E hoje, aos 47 anos, sóbrio e em recuperação, não bebo uma gota de álcool, não tomo nada que influencie o meu estado de humor, não fumo nem jogo e pago as despesas inerentes a um cidadão. 

Sou tão feliz! O meu filho voltou a viver comigo e noto que começa a respeitar-me. Tenho amigos com quem partilho a gratidão e o amor em AA. 

Muito obrigado a todos por estarem na minha vida.